GERMINAR

A Cada nascer do sol
Há esperança de ser livre
E como pássaro peregrino

Voar confiando em não ser só.


Santiago Dias

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

ENGENHO NOGUEIRA E NOVA ERA

(O Brasil e a copa de 2014)



Garricha e Didi - Foto da Web


Lembro-me de um tempo, em que quase todos os bairros da periferia das grandes metrópoles, tinham campos de futebol. Aos domingos, antes do almoço, tínhamos onde nos divertir. Aos poucos esse cenário veio mudando. Hoje é raro encontrar espaço para bater uma bolinha. Em Belo Horizonte, no bairro Aparecida, onde passei parte da minha adolescência, havia dois campos: o Engenho Nogueira e Nova Era. O primeiro se tornou Shopping, o segundo, uma fábrica de tijolos. A região ficou cheia de prédios e indústrias. As ruas cheias de automóveis, as calçadas se tornaram estacionamentos de motos. Os adolescentes disputam quem compra o melhor carro e a melhor roupa.
Aquelas crianças que jogavam bola e se divertiam, hoje passam os dias andando nos corredores desse centro comercial, olhando as vitrines. Essa construção, mesmo antes de ficar pronta, engoliu vários meninos, quando ainda estava sendo elaborada. Depois de feito o grande monumento, os garotos querem a todo custo vestir as roupas, comprar as marcas, as etiquetas e isso tem um preço. Muitos pagam com a própria vida.
Embaixo daqueles corredores de cimento e concreto armado, foi enterrado o sonho de centenas de jogadores de futebol, jornalistas, massagistas, locutores esportivos e outros futuros profissionais.
Agora eu pergunto: onde o Garrincha ensaiou seus dribles, treinou seus passes magistrais, antes de ser considerado profissional? Onde o Pelé se firmou antes de ser o Pelé? Tenho certeza que foi nas peladas, nos becos, vielas e campinhos de bairros. O sonho de milhares de crianças foi soterrado por toneladas e toneladas de luxo...
O Passeio de domingo se resume em subir e descer escadas rolantes; olhando etiquetas, modelos de roupas e outras coisas que nunca poderão possuir. Roupas custando “o olho da cara” para fazê-los parecerem importantes.
No meu campinho do Engenho Nogueira, vi o José Leiteiro, o João Bosco, o PP, o Tuí, o João da Baiana, o Mauricio Bananeira, o Geraldinho, o Cláudio Pavão, o Gerléves, o Zué, o Manoel Amadeu, o Juvenil, o João Prata, o Aristides, o Sanfona, o Nivaldo, o Valério, o Carlinhos, o Nilson, e uma infinidade de garotos driblando o destino e fazendo valer o grito de Gol, gol, gol do Engenho Nogueira. Aquele pedaço de chão fazia a alegria daquela meninada.
Vi também, estupefato, o Ederaldo, o Zé do Pastel, o Buru, o Marcio da Vivi, o Quem Quem, o Antonio Carlos, todos sonhando em serem jogadores. Presenciei também suas quedas. Vi esses meninos sendo engolidos por um vendaval chamado violência. As garras do consumismo os levaram para o Nunca Mais. O sonho do futuro se tornou ferro, pó e pedras.
O Engenho Nogueira, o Nova Era e outros campos das várzeas se tornaram fumaça. Hoje aquelas crianças namoram as vitrines, as roupas de luxo, os automóveis e chupam os dedos. Uns se rendem à embriaguez e caem no esquecimento, às drogas os consolam. Outros empunham as armas e vão cobrar o futuro. Também foram bebidos pelo destino. Outros enlouquecem - ou enlouqueceram - vivem contando estrelas.
Responda-me, por favor: o que será da geração futura? Há escolas de futebol, mas a maioria desses talentos não tem dinheiro nem para pegar o ônibus. Escolinhas pipocam por todos os lados. Os filhos dos que tem dinheiro tentam aprender o ofício do futebol. Quanto aos meninos que citei, o futebol era natural. Ás vezes, as escolinhas acabam excluindo talentos que nascem nos morros, nas margens dos rios e becos. Se o Pelé, o Garrincha e muitos outros jogadores tivessem nascido mais tarde, não teriam chance de mostrar seu balé nos gramados.
. Domingo, após um festival de jogos, o povo gritava, batia palmas e sorria feliz pela vitória do time da casa. Fogos de artifícios explodiam por todos os lados. Era uma felicidade só. A carne ardia na churrasqueira, o samba corria solto na margem do campo. A cerveja descia macia na garganta. A cachaça quebrava o gelo, descontraia ainda mais aquelas pessoas.
Mesmo com toda desvalorização com que esse país, ou melhor, os administradores dessa nação tratam a juventude, sinto que nem tudo está perdido.
Certo dia, no meio daquela alegria, o Senhor Sincero pegou o violão e cantou acompanhado pelos amigos. Lembro-me do refrão daquele samba: “Se essa mulher fosse minha / Eu a ensinava a viver / Dava feijão com farinha / A semana inteirinha / Pra ela comer...” O João Bosco marcava o ritmo, batendo com um abridor de cerveja numa garrafa. O Bujão tocava uma caixinha de fósforo, o Benê sacudia uma latinha cheia de areia, fazendo o chocalho. Do outro lado da roda estava o João careca, o Antonio Mingau, o Sabino, o Dicão, o Rodolfinho, o Lourenço conversando e tomando algumas doses de cagibrinas.
O Senhor Sincero, ao terminar de cantar essa música alegre e cheia de ironia, levantou-se da pedra em que estava assentado, ergueu a mão direita e começou dizer quase gritando:
“Tenho orgulho de ser brasileiro. Ser brasileiro é ser solto, inventivo e sentimental. Ter um litoral repleto de sol e bonito por natureza. Poder falar de saudade, palavra tão nossa. Exercer a cidadania nas urnas e ruas desse país. Sentir o nó na garganta no momento do gol, do pódio, da reta final. Ser receptivo com as diferenças. Amar as cores...
Ah... Essa mistura de raças, que nos faz tão especiais, que nos dá a musicalidade, o ritmo que agrada a gregos e troianos. Essa arte brasileira que reflete a exuberância da natureza e a mistura de povos. Talvez seja por isso que nossos artistas são tão criativos. É assim na literatura, no teatro e nas artes plásticas. Vamos à busca dessa identidade como quem procura a si mesmo: permitindo-nos descobrir o quanto esse Brasil é fascinante, rico e cheio de diferenças. Essas descobertas nos tornam mais conscientes dos nossos valores e de nossa responsabilidade como cidadãos.”
Naquela época, achei o Senhor Sincero Bento dos Santos, ingênuo, ao expressar essa poesia, que também achei cafona. Sabia eu que o Brasil estava em crise e tinha consciência distante que muita gente amargava nos porões da ditadura militar. Depois de percorrer muitos caminhos acreditando em políticos oportunistas, percebi que o Sincero, sinceramente não estava errado. Por isso resolvi endossar sua expressão através desse meu canto de saudade. Sei que o importante é revolucionar a vida e os sentimentos. Essa é a minha revolução. Revolução feita de dentro para fora.
Ofereço esse texto a todos da minha comunidade, comunidade brasileira. Desejo de coração que as pessoas avancem, mas que esse avanço não nos tire o prazer de sermos felizes. Que os Shoppings, indústrias, prédios não ocultem as estrelas. Que os campos de futebol voltem para as vilas e que nossos meninos voltem para as peladas. Assim o Brasil vai poder conhecer um novo Garrincha, um novo Pelé e outros brilhantes jogadores. Precisamos nos lembrar de que o futuro é feito de sonhos.
A arte do futebol e outras artes podem funcionar como elixir, remédio para amenizar a dor e evitar possíveis confrontos, pois alguns jovens percebem que vivem como ratos em esgotos. Muitos sabem que essa nação tem uma dívida para com seu povo, e às vezes, até inconscientemente não se conformam em viver pacificamente na miséria. Uma parcela grande tem consciência que seus antepassados construíram esse país com a força dos braços.
Vamos pra frente Brasil! Vamo-nos misturando e miscigenando como o café com leite! Essa nação vai aos poucos se tornando uma cesta de frutas tropicais, céu com pássaros coloridos voando e nuvens brancas ilustrando o azul.
Quando tivermos saúde, moradia digna, escolas, trabalho, artes... eu vou gritar com prazer, gol, gol, gol do Brasil!
É assim que quero ver a copa de 2014.

SANTIAGO DIAS
(Trecho do livro: O Plantador de Manhãs)

Nenhum comentário:

Postar um comentário