GERMINAR

A Cada nascer do sol
Há esperança de ser livre
E como pássaro peregrino

Voar confiando em não ser só.


Santiago Dias

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

A RABECA NÃO SILENCIOU - (Ao Maestro Zé Gomes)


Zé Gomes - Foto retirada da Web

Sempre ouvi que música clássica instrumental era feita exclusivamente para dormir. Achava que a música era bonita demais para uma função tão pequena. No meu caso, dormia logo na segunda faixa. Desde que me entendo por gente não me lembro de perder uma noite de sono, mas com a música, dormia mais rápido. Dormia o sono dos justos, mesmo com o mundo caindo sobre minha cabeça. Realmente a música funcionava com perfeição. Um dia parei para pensar e conclui que nunca precisei de música para dormir. Resolvi conhecer melhor a instrumental clássica. Fui às lojas e comprei Bethovem, com ele o sono não me pegava tão rápido e, assim, pude ouvi-lo com a devida atenção. Achei a coisa mais linda do mundo. Parecia um milagre. Depois foi a vez de ouvir Tchaikovsky, Vivaldi, Ravel e entre eles veio também o Mozart. Parecia que o som dos violinos vinha cortando o céu, entrava no meu íntimo e se alojava na alma. Achava isso uma maravilha e eu era um privilegiado por ter descoberto um estilo tão encantador. Essa música me transportava para os estados mais variados. Chorava e ria de emoção ao mesmo tempo. Queria mostrar aos meus colegas que insistiam em ouvir o que se tocava nas emissoras de rádio.
Naquele tempo, conhecia com propriedade a música caipira, cada ponteio, cada arpejo e cada nota. Sabia até o timbre de voz dos intérpretes. Conhecia também o samba, o baião, o forró, o xote, o bolero, a valsa, o tango e até outras músicas com estilos duvidosos, mas da instrumental clássica não tinha conhecimento. Conheci o Bolero de Ravel e achei que não parecia coisa feita por alguém de carne e osso. Achava que só Deus poderia fazer algo com tamanha perfeição e beleza. Tudo no seu lugar, cada instrumento soava no seu devido lugar. Cada acorde, cada nota, era fascinante.
Os ignorantes diziam que só as pessoas com sexualidade duvidosa gostavam desse estilo de música. Eles usavam essa mesma expressão para os filósofos e outros ligados às artes. Por isso, muitos colegas menos esclarecidos se afastaram de mim, mas não deixei de me aprofundar e conhecer melhor esse encantamento chamado instrumental. Os velhos colegas estão mergulhados na obscuridade do desconhecimento e permanecem presos a seus dogmas. Teimosamente continuo ouvindo esse estilo e posso garantir que não me tornei menos homem por isso.
Há muito tempo fui a um show de um conhecido cantor e vi um jovem franzino, esguio e sereno com seu violino, tirando notas e sons que pareciam vir do além. Num dado momento o cantor nos brindou com um solo daquele instrumento. Foi um instante mágico. Nunca me esqueci. O violino só faltava falar. Imitava crianças sorrindo ou chorando. Imitava também os animais, as aves e até os automóveis. Era a grandeza humana contida num instrumento tão pequeno. Fui a outros shows e lá estava ele com seu instrumento. A todos os shows de que ele participava eu ia, só para ouvi-lo e vê-lo destilando suas canções.
Certo dia fui à casa de uma amiga e de súbito conheci seu esposo, o bendito violinista. Era o jovem que sempre vi atrás daquele doce e sagrado violino. O maestro Zé Gomes, aquele homem cheio de sensibilidade e música. Tornamo-nos amigos e parceiros, a partir daquele instante. Ele me recebeu como se fossemos velhos amigos e na hora começamos criar, unindo palavras e músicas. Assim as palavras começaram a dizer o que estava preso na garganta e no coração.
Seu nome de batismo é Jose Bonifácio Kruel Gomes, mas por mais de cinco décadas se tornou conhecido como Zé Gomes, o “Zé”. Familiar à arte de Bach, Stravinsky, Mozart, Paganini, Villa-Lobos, de quem foi magnífico intérprete.
Através de suas músicas eu consigo falar com Deus. Quando paro para orar, a minha reza é música instrumental. Tenho certeza que chego bem perto do paraíso, onde possivelmente, ele, o Zé Gomes, deve se encontrar com aquele sorriso amigável e gentil. Portanto, posso dizer que sua rabeca não silenciou, apenas mudou de plano.
Passei vários anos esperando a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente e me contentava apenas em assisti-lo nos palcos. O que me conforta é ter a honra de tê-lo conhecido. Era um poeta que não se preocupava em escrever em forma de palavras. Escrevia através das notas musicais, das canções e frases que criava nos pentagramas. Sua voz anasalada, aveludada, suave e pausada, jorrava poesia.
Possuo alguns CDS de sua autoria. São músicas feitas com alma e sentimento. Além disso, tenho orgulho de poder ouvir minha poesia em sua voz, acompanhado por ele mesmo, executando vários instrumentos. Viola de Cocho, Violoncelo, Violão, Piano e o lendário violino, que ele mesmo o chamava de rabeca. Só lamento não ter oportunidade de desfrutar mais da sua ilustre companhia.
“O som da rabeca interrompeu-se. Em meio ao acorde, calou-se, até a vibração se extinguir por completo, o tempo suspenso, o vazio. E o rabequeiro Zé Gomes sai de cena, deixando a peça inacabada.
Escrevi rabequeiro, mas o Zé era artista completo: arranjador, compositor, luthier, pesquisador e maestro. Pensador da cultura, crítico radical das “panelinhas” repletas de sanguessugas e vampiros, dos que mamam verbas, conluio infame onde “quem está dentro não sai e quem está fora não entra”. O Zé não estava nessa. Durante seu longo percurso, sempre foi rebelde, arredio, avesso ao sucesso fácil e aos holofotes.”
O velório não foi de tristeza, choro, foi uma festa, como ele mesmo gostava. Os amigos tocaram e cantaram canções inesquecíveis. Infelizmente eu não estava presente, pois sempre esperei que vivesse muito mais. Ele tinha mais para doar a humanidade através da música. Agora só me resta ouvir sua música e relembrar sua graciosa amizade. Ele deixou um vazio imenso, não só como músico, mas como amigo e irmão.
Partiu deixando um legado para a posteridade. O barco do destino chegou inesperadamente e o levou para tocar com os anjos, diante do senhor das histórias.
Cheguei pensar que nos dias seguintes iríamos nos encontrar para darmos continuidade aos trabalhos. Achava que era só uma brincadeira de mau gosto, travessura de criança. Mas ele se foi e deixou esse silencio assassino. Ainda bem que sua música ficou para abrandar nossos corações. Obrigado Zé, por sua contribuição humana. O mundo sem você não é o mesmo!
SANTIAGO DIAS
(Trecho do livro: O Plantador de Manhãs)
Santiagodias13@yahoo.com.br

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