GERMINAR

A Cada nascer do sol
Há esperança de ser livre
E como pássaro peregrino

Voar confiando em não ser só.


Santiago Dias

sábado, 14 de abril de 2012

BUSCANDO NOVOS HORIZONTES


Foto da Web


A África, antes de ser invadida pelos predadores europeus, era unida, orgulhosa de sua cultura e seus costumes. Milhões e milhões de africanos foram arrancados e arrastados para diversos lugares do mundo. Foram vendidos como animais irracionais. Milhares de pessoas morreram nos combates e maus-tratos impostos pelos navegantes e mercadores. Ainda hoje o sistema capitalista vive jogando uns contra outros, para dificultar a integridade. Afirmam a todo o momento que o sonho de unidade é mera utopia. Tiraram-lhe o direito de uma família, ou de viver em paz até mesmo com os irmãos. A liberdade que esse povo precisa, ainda tem que ser conquistada.
Essa gente foi arrancada de suas aldeias e levada para lugares estranhos, onde sua cultura nada significava. Impuseram-lhe os costumes de um povo diferente. Foi proibido de praticar suas crenças. Os colonizadores diziam que sua religião era bruxaria ou magia negra. Ainda hoje, após tanto tempo, percebe-se que quase nada mudou em relação a isso.
Há algumas décadas, no tempo da guerra do Vietnã, o mundo sofreu uma influência muito grande. A juventude passou a usar roupas e cabelos no mesmo estilo dos militares. Quando o movimento “hippie” surgiu, quebrou a estrutura conservadora da classe dominante, determinando os rumos do consumismo, ou trazendo alternativas válidas. Os mesmos jovens que se trajavam como militares, começaram a questionar seus pais e ter um comportamento diferente. A partir daí, passaram a sofrer todo tipo de repressão, por serem cabeludos contestatórios e por pregarem a liberdade.
Com o negro ocorre da mesma forma. Ao passar pelas ruas, escolas, teatros e bares, são surpreendidos com gestos desdenhosos, por caracterizarem suas origens nas roupas e cabelos. Sempre tem que engolir as piadinhas de mau gosto dessa sociedade retrógrada e falida, que em nome de sua civilidade, deveria aceitar essa exteriorização como um ato de preservação de sua autenticidade cultural.
Temos que parar por um instante e dar um passeio dentro do nosso íntimo... Talvez aí, vamos perceber que somos a soma de todas as cores. Somos índios, negros, amarelo e branco. Como disse um amigo:
- “Isso está claro nos traços. Se não é no cabelo é na cor. Se não é na cor é nos lábios ou nariz. O nosso País é um jardim e muito mais bonito, na medida em que tenha variedades de flores. Que todas elas possam florescer livremente. Se tiver uma só cor, ele se torna monótono. O Brasil é um jardim de várias etnias”.
Alguns desavisados deixam escapar que negro é feio, é inferior e incapaz de raciocinar. Não falam abertamente, mas está explícito nos gestos e ações. Por muitas vezes, o negro depara-se com pessoas que invertem a condição: trata-o de racista ou revoltado.
Alguns negros se iludem dizendo que são pardos, moreninhos, moreno jambo ou mulatos. Eles não sabem que também, são vítimas do preconceito como qualquer negro e padecem muito, tentando passar por brancos. É impossível não diferenciar o café, do leite, mesmo quando os dois são misturados.
A consciência é o caminho da liberdade. Para se livrar desses grilhões, que às vezes, são impostos até mesmo pela família, é preciso desvencilhar-se de todos os preconceitos. Sejam eles raciais, religiosos ou sociais. Os elos que nos ligam são mais fortes. Se formarmos uma corrente na busca da liberdade, será impossível barrar nossos caminhos. A partir daí, poderemos abrir os braços para abraçar o Universo e vermos o sol nascer. Vamos poder parar e olhar o percurso das águas e na transparência, ver brotar a essência do nosso ser.

SANTIAGO DIAS
(Trecho do livro: O Plantador de Manhãs)

O MENINO QUE NÃO ERA NADA



(À Professora Dioguina Augusta Santana)
Foto da Web

Era um menino normal como qualquer um daquela região. Gostava de brincar com os outros de sua idade. Apesar da timidez, era alegre e sonhava com um futuro melhor. Só recebia carinho dos animais, pois morava no interior. Seu próprio pai propagava que ele era a pior criança daquele lugarejo.
Esse menino foi crescendo assim, sempre ouvindo do pai:
- Você não é nada, não vale nada e nunca vai ser nada!
Essa frase era repetida todos os dias, toda hora e em todo lugar. Ele acordava e seu bom dia era esse bordão. De tanto o pai falar que ele não era nada aos parentes, vizinhos, amigos e até aos estranhos, ele passou a ser chamado de Nada. Por onde o pequeno andava, alguns maldosos inventavam histórias mentirosas a seu respeito. O homem não queria saber se era mentira ou não, por isso o surrava covardemente. Aquelas pessoas riam ao vê-lo todo cortado das chicotadas. O pobre menino vivia com o corpo marcado. Ainda por cima, aquele homem ordenava aos amigos para surrá-lo quando o vissem fazendo peraltices. Esses homens, ao encontrá-lo em qualquer lugar, já iam logo tirando a correia ou cinto. A humilhação vinha de todos os lados. Apanhava de uns homens estranhos, ignorantes e agressivos. Falavam para seu pai que ele estava fazendo travessuras, o “troglodita” acreditava. Acho que esses homens admiravam muito a violência do pai do Nada, pois talvez fizessem o mesmo com a família. Seu pai não queria saber e nem podia imaginar que esse menino tivesse algum traço de inteligência ou personalidade.
O Nada vivia triste, percebeu que não era querido por ninguém. Por onde andava, as crianças e até adultos o ridicularizavam. Pensou várias vezes em suicídio, mas por gostar muito da mãe, não quis causar-lhe mais aborrecimentos. Achava que ela também era vítima.
O Nada crescia sendo nada, vencia seus obstáculos como nada. Com seis anos, começou a estudar, mas antes de ir para a escola, tinha que tratar dos porcos e das galinhas. Tinha que buscar lenha, cortar cana, ajudar a moer numa engenhoca de madeira, tomar banho no córrego e sair correndo por quatro quilômetros, até a escola, sem comer nada. Lá ficava das sete às doze horas, quase morrendo de fome. Naquele tempo não tinha merenda. Com esse histórico, nada entrava no seu entendimento. Passava de professora por professora e nada de nada. Passava de sala por sala e nada de aprendizagem. Até ele começou se convencer de que era nada mesmo.
Por sorte apareceu na escola uma professora, que se interessou por ensiná-lo. Só então começou a sentir certo orgulho de si mesmo. Ela dizia que ele era tão importante quanto qualquer pessoa e começou chamá-lo pelo nome civil. Foi aí que ela fez o Nada perceber que era alguma coisa, mesmo contrariando o pai e amigos. Através daquela professora, ele descobriu que era gente, que tinha sentimentos e que gostava das pessoas. Aprendeu a escrever e ler tudo, principalmente poesias. Aprendeu a ouvir músicas e até esboçava um sorriso, ainda que quase todos os que o rodeavam o considerassem nada.
Parecia tarde demais para que alguém percebesse alguma importância em Nada. Seu pai se empenhava fervorosamente com unhas e dentes para que todos desacreditassem nesse menino. Sempre dizia para quem os visitasse:
- Estou falando sério, esse menino não vale nada mesmo!
Dizia isso repetidas vezes a qualquer um que se aproximasse dele. Para algumas pessoas, era Nada pra lá, Nada pra cá e assim ia correndo o tempo. Mas o Nada agora descobriu a poesia. Começou se relacionar com os livros e o mundo mágico dos poetas. Conheceu também a esperança, que até então parecia muito distante.
Enquanto ele sonhava, o pai se preocupava em propagar que o menino era nada. O Nada lendo e relendo os poetas, desenvolveu também suas poesias, mas para seu pai não era nada. Também pudera, ele não sabia ler! Sua mãe, seus irmãos e seus sobrinhos não são diferentes. Parece que isso vai ocorrer ainda por muito tempo nas gerações vindouras dessa família.
O Nada se mudou com a família para uma cidade grande e a tônica do seu pai em afirmar que ele não era nada, enfraqueceu. Nesse outro lugar, o Nada conhecia as pessoas antes do seu pai e isso começou a inverter a situação. O Nada já era um adolescente que gostava de ler e escrever poesias. Isso o destacava entre os demais, fato que irritava profundamente o pai. Um dia o velho acordou bem cedo, pegou um saco preto, juntou os trapos do Nada e jogou na calçada. Voltou e tirou o Nada a socos, empurrões e ofensas da cama e o escorraçou de dentro de casa, dizendo:
- Não volte nunca mais aqui. Nunca mais quero ver a sua “cara”!
Foi mais um tropeço na vida do Nada.
Saiu caminhando sozinho, triste, sem dinheiro e perdido nas ruas da cidade grande. Passava as noites assentado na área de espera da rodoviária, onde não corria o risco de ser agredido por policiais ou outros moradores de rua. Por ali ele ficou vários dias, sem alimento e sem higiene pessoal, já que se encontrava totalmente desprevenido financeiramente.
Apesar de tudo, o Nada não perdeu a esperança. Por onde andava, levava consigo uma pasta com suas inseparáveis poesias, que era o bem mais precioso que possuía. Ele declamava para seus colegas de infortúnio e isso o popularizou entre eles. Através desse feito, conquistou o carinho desses pobres infelizes, pois todos tinham uma história parecida. A companhia desse menino era disputada. Até que um deles o convidou para trabalhar como servente de pedreiro em outro estado. Segundo esse colega, era só convencer o homem que selecionava, podia mentir até a idade. Foram ao local da seleção, mas ele era ainda menor de dezoito. Naquele tempo isso era fácil de resolver: fez novos documentos, com vários anos a mais e foi contratado de pronto. Ele, o amigo e outros companheiros de falta de sorte partiram para outro estado. Foi assim que conseguiu deixar de ser morador de rua.
Na obra em que foi contratado, trabalhavam quase mil operários, todos parecidos com ele, na tristeza, na solidão e na angústia. Percebeu também que somente vinte por cento eram alfabetizados. Todos se encantaram com suas histórias e seu jeito de contá-las. Vinham de longe para ouvir suas poesias.
O Nada escreveu cartas para esses colegas analfabetos e lia as que eles recebiam. Muitos outros começaram a procurá-lo para escrever para parentes distantes. Sabia a intimidade de cada um e até o destino daqueles homens e através deles conheceu cultura de diversos lugares do país. Foi assim que começou a se especializar na arte de escrever. Ele viu na prática o quanto aquela professora com sua estreiteza de caráter e sensibilidade lhe fez bem. Com o tempo o Nada foi tomando mais gosto pela escrita e foi apurando seu estilo de escrever.
Hoje o Nada é conhecido e admirado em muitos lugares, mas onde ele se originou, não passa de um mero estrangeiro. Uma vez um colega de adolescência disse:
- Nem aparência de poeta ele tem!
Qual será a aparência de um poeta?
De qualquer forma o Nada criou vários livros. Ele é referência e respeitado por outros amigos e poetas, mas para seus antigos colegas e parentes, ele simplesmente não é nada. Seu pai morreu, mas se estivesse vivo, possivelmente ainda o consideraria nada. Nem seus irmãos conhecem seus trabalhos, provavelmente continuam achando que ele não é mesmo nada e seu trabalho, menos ainda.
Ainda bem que o Nada teve a alegria de conhecer aquela professora. Aquele momento foi o divisor de águas em sua vida. Ela conseguiu transformar o nada em um ser humano. Bastou algumas palavras de autoconfiança, como qualquer um precisa. Que Deus abençoe essa professora, onde quer que esteja! Ela e seus conhecimentos mágicos conseguiram resgatar o menino poeta de trás da cortina preta da ignorância e elevá-lo a dimensão das estrelas.
Foi através dessa reflexão e de um momento minúsculo de lucidez, que percebeu o quanto o professor é importante para a sociedade. O Nada tinha tudo para ser um criminoso, revoltado, violento e, no entanto, escolheu a poesia para tentar aliviar a dor de outras vitimas.
Qualquer palavra de desestímulo vinda dos pais, pode atrapalhar psicologicamente e destruir a vida inteira de um cidadão. As palavras podem torná-lo agressivo, truculento, complexado e isso se estender por toda vida.
SANTIAGO DIAS
(Trecho do livro: Caminhos de Nova Belém)

quarta-feira, 11 de abril de 2012

POESIA SEM POESIA


Imagem da Web

Ganhar livros nem sempre me deu alegria. Quando tinha seis anos de idade, meu pai viajou para a capital do Estado. Ao retornar, trouxe presentes para todos os filhos. Fiquei ansioso esperando o meu. Ele tirou da bolsa um livro velho, sem capa, com as folhas amarelecidas e sujas. Deu-me aquilo. Senti vontade de jogar fora na mesma hora. Como sou discreto, resolvi esperar um pouco. Depois que ele terminou de contar suas vantagens e desvantagens, chamou-me. Pegou o livro de minhas mãos e disse:
- De hoje até domingo quero que você aprenda essas duas lições! Apontando para as primeiras páginas.
- Se não me der essas lições na ponta da língua, sem gaguejar, esse chicote vai comer!
O chicote é usado para bater em cavalos e outros animais. É também chamado de relho. Meio metro de madeira roliça e um pouco mais de um metro de couro, desfiado na ponta. Onde pega, valha-me Deus! Em qualquer parte do corpo ele deixa vários vergões. Marcas roxas, muitas vezes ficam em carne viva.
Tive sete irmãos e eu apanhei mais que os outros. Era o mais travesso e questionador. Para provocar-me, ele pegava uma pedra e dizia que era pau. Eu contestava dizendo que era pedra. Por isso, surrava-me violentamente. Ainda enfurecido, perguntava:
- Isso não é pedra, é pau, não é?
Balançava a cabeça afirmativamente. Só depois disso que ele parava de agredir-me.
Ainda não sei por que minha mãe tão passiva e amiga dos filhos permitia que ele fizesse aquilo. Ela se limitava a olhar-me sem nada dizer. Observava-me com tristeza. Sentia-me o pior ser humano do universo. Às vezes, penso que ela não dizia nada para não tirar a autoridade dele. Depois de toda a humilhação, pensava:
- Nunca mais vou falar com esse homem!
Ela, cheia de artimanhas, tramava alguma coisa para amenizar o confronto. Acabava me esquecendo de que éramos inimigos mortais. Para maior aborrecimento, ele comentava com os amigos. Para ele, espancar filhos, parecia natural e isso me deixava ainda mais constrangido.
Quanto ao livro em latim, passei a semana procurando alguém que soubesse lê-lo, mas ninguém, nem mesmo os professores da região. Quando faltavam dois dias para vencer o prazo estabelecido, não sabia nada, a não ser, soletrar algumas palavras parecidas com o português. Temendo as surras que recebia até mesmo sem motivo, imagina agora, merecendo! Comecei planejar alguma coisa para me livrar da violência.
Chegou o bendito domingo e pensei que ele havia se esquecido. Fugi dele o tempo todo e nada adiantou. Antes do almoço, pegou o chicote, sentou-se no quintal e gritou:
- Vem aqui realizar sua tarefa!
Meu coração só faltava pular pela boca. Sabia que ia sofrer aquelas chicotadas que doíam até na alma. Sentei-me diante dele, parecendo um cachorrinho indefeso e maltratado pelo dono. Estava sem camisa e descalço, vestido apenas com uma pequena bermuda. Só pensava naquele chicote lambendo minhas costas com aqueles fios de couro retorcidos, deixando marcas roxas, onde alcançasse.
De repente veio-me a luz, subitamente lembrei-me que ele não sabia ler. Não lia nem português, quanto mais latim. Pensei inventar outras palavras, pois ele não sabia nada tanto quanto eu. Foi aí que comecei a narrar o que estava à minha volta. Falei do jardim florido e da laranjeira em flor, parei como se tivesse terminado a primeira lição. Olhei por cima do livro e constatei que ele estava rindo com satisfação. Pensei:
- Convenci o pangaré!
Sem pestanejar, ainda com o chicote na mão, pediu-me outra lição. A segunda foi mais difícil, pois teria que ser um tema diferente. Ele não podia perceber a farsa. Comecei a segunda lição falando pausadamente e com mais naturalidade.
Foi assim que enganei meu pai e não recebi essa surra. Também foi assim que consegui criar minha primeira poesia, mesmo sem inspiração. Por esse fato, eu o perdôo. Inocentemente, até hoje, ele pensa que sou um exímio conhecedor do latim.
Não se esqueçam de que a violência que se espalha nas ruas, começa em casa. Todas as crianças que são espancadas em casa acabam cometendo o mesmo erro com os colegas de sua idade. Eu saia de casa com vontade de bater em qualquer criança que encontrasse. Parecia que ela era culpada do que ocorria comigo. Tinha vontade de bater, principalmente nos adultos. Achava que eles eram meus inimigos. Era uma luta para controlar esse instinto de violência que morava em mim. Tinha raiva de quem me cumprimentasse.
Esse relato não é para revelar nenhuma mágoa do meu pai. Isso é só uma revelação da lembrança amarga do meu tempo de menino. Nunca consegui esquecer. Lembro-me bem de uma frase de efeito, que diz: “Quem apanha, nunca esquece”. Sou prova viva desse argumento.

SANTIAGO DIAS
(Trecho do livro: O Plantador de Manhãs)