GERMINAR

A Cada nascer do sol
Há esperança de ser livre
E como pássaro peregrino

Voar confiando em não ser só.


Santiago Dias

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A FILOSOFIA DO FEIO

Santiago, fotografado por Valquíria Fagundes


Há muito tempo ouvi uma história de um velho sábio. Dizia que a beleza e a feiúra caminhavam juntas. As duas foram tomar banho num rio muito distante. Enquanto a beleza se distraia brincando de jogar água para cima, a feiúra saiu sorrateiramente. Vendo que a beleza não percebeu sua ausência, então aproveitou e pegou sua roupa e se mandou. Quando a beleza se cansou de brincar saiu à procura de suas vestes. Surpresa constatou que a feiura havia fugido trajando suas roupas. Ficou desesperada sem saber o que fazer. Viu-se obrigada a usar a roupa da feiura. Até hoje elas são confundidas.
Acho uma injustiça o que se faz com os feios. Até a natureza desfavorece os feiosos. Já sei o que está pensando! “Não existe ninguém feio nesse mundo!” Conheço esse ditado há muito. Na prática só quem a sociedade dominante determinou que fosse feio sofre na carne as desventuras. Ele é mal visto de todas as formas. As pessoas o ignoram nas ruas e não é saudado nem pelas crianças. Nas festas, fica isolado num canto da casa. Todos o olham com desdém. Às vezes os donos solidarizam-se lhe oferecendo alguma coisa para comer. Ele só tem uma vantagem. O bonito tem a obrigação de ser sempre bonito e o feio não tem compromisso com nada.
O feio deveria ser visto de outra forma, mas além da feiúra, há quase sempre a timidez. Isso o faz parecer mais feio ainda. O tímido é visto como antipático. Outra barreira que ele enfrenta. Conheço um que ganhou o apelido de Franksten, ou simplesmente é chamado de todo feio. Quando ele está acompanhado por alguma mulher, os curiosos só faltam quebrar o pescoço para olhar os dois. Não falta quem diga: “O que aquela mocinha bonita viu naquele rapaz tão feio?” A pergunta fica sem resposta porque só ela sabe. Depois de todos esses sinônimos, ele nem mais se incomoda em ser chamado de todo feio.
Há um poeta que ousou dizer: “As feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”. Há outra frase de efeito que diz:
- Beleza não se põe na mesa!
Um amigo ainda mais atirado falou:
- Na verdade beleza não se põe na mesa, põe se na cama.
Os idosos também sofrem amargamente essas desventuras.
Conheço uma teoria que diz que a pessoa bonita deve fazer par com o feio. Ela se torna ainda mais bonita em sua presença. Tem outra vantagem, não precisa sentir ciúmes, porque ninguém quer saber do feio a não ser quem brilhantemente o escolheu.
Conheço uma pessoa que de tanto ser chamado de marmota, se convenceu que é feia, vive presa na solidão. Não vai a festas e não se mistura com ninguém para não enfear a paisagem. Cresceu sendo excluído e chamado de feio. Por isso se isolou e se tornou um eremita. Recusa-se a amar alguém dizendo que seu destino é ser feia.
Levado por incentivo revelou seu amor para uma dama. Através dessa revelação, causou tanta confusão que até hoje é torturado pela consciência. Diz que nunca vai se livrar desse pesadelo. Através dessa metáfora pede perdão por ter causado danos e transformado a vida de uma encantadora mulher.
Comparo as pessoas a um jardim florido. Embora algumas flores foram moldadas inteiramente cheias de encantos e formosuras, outras foram jogadas e sobrevivem rastejantes, tristes e nunca notadas. Se você procurar decifrar e conhecer o que existe dentro dos astros ainda desconhecidos e se aprofundar em perceber as cores e os contornos das flores silvestres abandonadas, ficará surpreso ao encontrar tanta beleza interior, tanto magnetismo escondido, tanta humildade e tanta simplicidade ainda adormecida.
Portanto, devo dizer a você que se enquadra nos padrões de beleza atual: “Não se iluda com a beleza / Ela é como a flor do campo / Desabrocha e fica muito bonita / E num espaço pequeno do tempo / Ela murcha, perde o aroma / E suas pétalas são levadas pelo vento”।

SANTIAGO DIAS
(Trecho do livro: O Plantador de Manhãs)
santiagodias13@yahoo.com.br

MULHER, MULHER

(Para dona Chiquinha, minha mãe)



- Foto da Web

Há muito tempo estava tentando escrever sobre as mulheres, mas sempre me senti impotente diante deste assunto. Falar de sua grandeza é pouco. Falar de sua luta no dia-a-dia também não me apetece. Dizer que a mulher caminha lado a lado com o homem ainda é um absurdo. A mulher é antes de tudo uma fortaleza, um porto seguro. Apesar de reconhecer suas fraquezas enquanto ser humano, as qualidades superam.
Diante do machismo que está impregnado até a alma do homem eu me atrevo a falar da minha admiração. Estou atento à sua luta. Ao lado de qualquer homem brilhante há a contribuição feminina. Mesmo anônimas elas vão tecendo suas tramas da vida e seus ideais vão circulando. Ai de mim se não tivesse a educação, a grandeza e a preciosa companhia de dona Chiquinha, minha mãe. Sem sua presença na minha formação, talvez eu fosse mais um número numa penitenciária ou até mesmo mais um nome em um cemitério. Felizmente tive o merecimento de ter nascido de uma mulher de fibra.
Há quem diga que alguns homens têm sensibilidade feminina. Por mais que tenham, estão longe da mulher. É ela que carrega outro ser no ventre e suporta a dor do parto. Ela que acompanha o sofrimento dos filhos e padece a dor da perda. É ela que dentro de sua fragilidade se fortalece. Ela é o alicerce da casa, a luz do existir e o equilíbrio de tudo. Ela que vê as enchentes arrastarem seus móveis e ainda levarem seus filhos sem nada poder fazer. Ela que enfrenta a enxada, o sol e a chuva nos campos. Ela que se depara com a rigidez da violência que levou mais um de seus filhos. Ela que tem o coração traçado de dor. Ela é a renovadora. Ela, a flor em botão. Ela, a alegria das pessoas, a fonte da esperança. Ela, a mãe do Universo. É dela que o futuro depende para a formação do homem e do mundo.
Certa vez o poeta Vinícius de Moraes disse:...“No longo capítulo das mulheres, Senhor, tende piedade das mulheres / Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres / Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres!
Apesar de endossar as palavras do Vinícius pela beleza de sua lira poética, não peço piedade. Elas não precisam. Peço apenas compreensão e respeito.
Ela é quem chora enquanto outros riem. Ela que divide a alegria e sofre triste e sozinha! Mulheres camponesas de mãos calejadas. Mulheres da cidade, de almas aflitas e corações inquietos. Mulheres marcadas pelo tempo, marcadas pela vida, formando mais um elo na corrente do avanço. Musas inspiradoras, motivos de criação. Mulheres explosivas e mulher razão. Mulher entre os escombros procurando em vão sua outra metade que a guerra levou.
Por mais que me iluda com a aparência, com a estética, tenho consciência que a mulher não é só corpo. É pensamento, formosura, afinidade e perfeição. Nem só sorriso. É inteligência, brilhantismo e sensibilidade. Não é só beleza. É ternura, fragilidade e solidez. Não é só mãe. É carinho, encanto, dedicação e grandeza. Nem só habilidade. É consciência, magia, dinamismo e resistência...
A mulher é rocha resistindo à fúria das ondas do mar. Pau para toda obra. Lenha que fogo não queima.

SANTIAGO DIAS
(Trecho do livro: O Plantador de Manhãs)
santiagodias13@yahoo.com.br

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

ENGENHO NOGUEIRA E NOVA ERA

(O Brasil e a copa de 2014)



Garricha e Didi - Foto da Web


Lembro-me de um tempo, em que quase todos os bairros da periferia das grandes metrópoles, tinham campos de futebol. Aos domingos, antes do almoço, tínhamos onde nos divertir. Aos poucos esse cenário veio mudando. Hoje é raro encontrar espaço para bater uma bolinha. Em Belo Horizonte, no bairro Aparecida, onde passei parte da minha adolescência, havia dois campos: o Engenho Nogueira e Nova Era. O primeiro se tornou Shopping, o segundo, uma fábrica de tijolos. A região ficou cheia de prédios e indústrias. As ruas cheias de automóveis, as calçadas se tornaram estacionamentos de motos. Os adolescentes disputam quem compra o melhor carro e a melhor roupa.
Aquelas crianças que jogavam bola e se divertiam, hoje passam os dias andando nos corredores desse centro comercial, olhando as vitrines. Essa construção, mesmo antes de ficar pronta, engoliu vários meninos, quando ainda estava sendo elaborada. Depois de feito o grande monumento, os garotos querem a todo custo vestir as roupas, comprar as marcas, as etiquetas e isso tem um preço. Muitos pagam com a própria vida.
Embaixo daqueles corredores de cimento e concreto armado, foi enterrado o sonho de centenas de jogadores de futebol, jornalistas, massagistas, locutores esportivos e outros futuros profissionais.
Agora eu pergunto: onde o Garrincha ensaiou seus dribles, treinou seus passes magistrais, antes de ser considerado profissional? Onde o Pelé se firmou antes de ser o Pelé? Tenho certeza que foi nas peladas, nos becos, vielas e campinhos de bairros. O sonho de milhares de crianças foi soterrado por toneladas e toneladas de luxo...
O Passeio de domingo se resume em subir e descer escadas rolantes; olhando etiquetas, modelos de roupas e outras coisas que nunca poderão possuir. Roupas custando “o olho da cara” para fazê-los parecerem importantes.
No meu campinho do Engenho Nogueira, vi o José Leiteiro, o João Bosco, o PP, o Tuí, o João da Baiana, o Mauricio Bananeira, o Geraldinho, o Cláudio Pavão, o Gerléves, o Zué, o Manoel Amadeu, o Juvenil, o João Prata, o Aristides, o Sanfona, o Nivaldo, o Valério, o Carlinhos, o Nilson, e uma infinidade de garotos driblando o destino e fazendo valer o grito de Gol, gol, gol do Engenho Nogueira. Aquele pedaço de chão fazia a alegria daquela meninada.
Vi também, estupefato, o Ederaldo, o Zé do Pastel, o Buru, o Marcio da Vivi, o Quem Quem, o Antonio Carlos, todos sonhando em serem jogadores. Presenciei também suas quedas. Vi esses meninos sendo engolidos por um vendaval chamado violência. As garras do consumismo os levaram para o Nunca Mais. O sonho do futuro se tornou ferro, pó e pedras.
O Engenho Nogueira, o Nova Era e outros campos das várzeas se tornaram fumaça. Hoje aquelas crianças namoram as vitrines, as roupas de luxo, os automóveis e chupam os dedos. Uns se rendem à embriaguez e caem no esquecimento, às drogas os consolam. Outros empunham as armas e vão cobrar o futuro. Também foram bebidos pelo destino. Outros enlouquecem - ou enlouqueceram - vivem contando estrelas.
Responda-me, por favor: o que será da geração futura? Há escolas de futebol, mas a maioria desses talentos não tem dinheiro nem para pegar o ônibus. Escolinhas pipocam por todos os lados. Os filhos dos que tem dinheiro tentam aprender o ofício do futebol. Quanto aos meninos que citei, o futebol era natural. Ás vezes, as escolinhas acabam excluindo talentos que nascem nos morros, nas margens dos rios e becos. Se o Pelé, o Garrincha e muitos outros jogadores tivessem nascido mais tarde, não teriam chance de mostrar seu balé nos gramados.
. Domingo, após um festival de jogos, o povo gritava, batia palmas e sorria feliz pela vitória do time da casa. Fogos de artifícios explodiam por todos os lados. Era uma felicidade só. A carne ardia na churrasqueira, o samba corria solto na margem do campo. A cerveja descia macia na garganta. A cachaça quebrava o gelo, descontraia ainda mais aquelas pessoas.
Mesmo com toda desvalorização com que esse país, ou melhor, os administradores dessa nação tratam a juventude, sinto que nem tudo está perdido.
Certo dia, no meio daquela alegria, o Senhor Sincero pegou o violão e cantou acompanhado pelos amigos. Lembro-me do refrão daquele samba: “Se essa mulher fosse minha / Eu a ensinava a viver / Dava feijão com farinha / A semana inteirinha / Pra ela comer...” O João Bosco marcava o ritmo, batendo com um abridor de cerveja numa garrafa. O Bujão tocava uma caixinha de fósforo, o Benê sacudia uma latinha cheia de areia, fazendo o chocalho. Do outro lado da roda estava o João careca, o Antonio Mingau, o Sabino, o Dicão, o Rodolfinho, o Lourenço conversando e tomando algumas doses de cagibrinas.
O Senhor Sincero, ao terminar de cantar essa música alegre e cheia de ironia, levantou-se da pedra em que estava assentado, ergueu a mão direita e começou dizer quase gritando:
“Tenho orgulho de ser brasileiro. Ser brasileiro é ser solto, inventivo e sentimental. Ter um litoral repleto de sol e bonito por natureza. Poder falar de saudade, palavra tão nossa. Exercer a cidadania nas urnas e ruas desse país. Sentir o nó na garganta no momento do gol, do pódio, da reta final. Ser receptivo com as diferenças. Amar as cores...
Ah... Essa mistura de raças, que nos faz tão especiais, que nos dá a musicalidade, o ritmo que agrada a gregos e troianos. Essa arte brasileira que reflete a exuberância da natureza e a mistura de povos. Talvez seja por isso que nossos artistas são tão criativos. É assim na literatura, no teatro e nas artes plásticas. Vamos à busca dessa identidade como quem procura a si mesmo: permitindo-nos descobrir o quanto esse Brasil é fascinante, rico e cheio de diferenças. Essas descobertas nos tornam mais conscientes dos nossos valores e de nossa responsabilidade como cidadãos.”
Naquela época, achei o Senhor Sincero Bento dos Santos, ingênuo, ao expressar essa poesia, que também achei cafona. Sabia eu que o Brasil estava em crise e tinha consciência distante que muita gente amargava nos porões da ditadura militar. Depois de percorrer muitos caminhos acreditando em políticos oportunistas, percebi que o Sincero, sinceramente não estava errado. Por isso resolvi endossar sua expressão através desse meu canto de saudade. Sei que o importante é revolucionar a vida e os sentimentos. Essa é a minha revolução. Revolução feita de dentro para fora.
Ofereço esse texto a todos da minha comunidade, comunidade brasileira. Desejo de coração que as pessoas avancem, mas que esse avanço não nos tire o prazer de sermos felizes. Que os Shoppings, indústrias, prédios não ocultem as estrelas. Que os campos de futebol voltem para as vilas e que nossos meninos voltem para as peladas. Assim o Brasil vai poder conhecer um novo Garrincha, um novo Pelé e outros brilhantes jogadores. Precisamos nos lembrar de que o futuro é feito de sonhos.
A arte do futebol e outras artes podem funcionar como elixir, remédio para amenizar a dor e evitar possíveis confrontos, pois alguns jovens percebem que vivem como ratos em esgotos. Muitos sabem que essa nação tem uma dívida para com seu povo, e às vezes, até inconscientemente não se conformam em viver pacificamente na miséria. Uma parcela grande tem consciência que seus antepassados construíram esse país com a força dos braços.
Vamos pra frente Brasil! Vamo-nos misturando e miscigenando como o café com leite! Essa nação vai aos poucos se tornando uma cesta de frutas tropicais, céu com pássaros coloridos voando e nuvens brancas ilustrando o azul.
Quando tivermos saúde, moradia digna, escolas, trabalho, artes... eu vou gritar com prazer, gol, gol, gol do Brasil!
É assim que quero ver a copa de 2014.

SANTIAGO DIAS
(Trecho do livro: O Plantador de Manhãs)

domingo, 8 de janeiro de 2012

CONTINÊNCIA PARA AS ESTRELAS


foto da web

- “Eu te amo meu Brasil, eu te amo. Ninguém segura à juventude do Brasil”...


Desde menino questiono o bairrismo de algumas pessoas. A valorização exagerada desse ou daquele lugar. Onde nasci, havia um policial que exercia muita influência no meio social. Principalmente na única escola que havia naquela região. As crianças eram obrigadas a cantar o hino nacional diversas vezes ao dia em posição de sentido. A meu ver, aquilo ocultava a beleza simbólica dessa poesia. O Hino Nacional é um poema de rara beleza e grandeza. Acho que é o hino mais bonito do mundo. É uma pena que a maioria não consegue entender sua metáfora.
O policial era popularmente conhecido como Geraldo Soldado. Ele lançava as idéias para as professoras e inocentemente a meninada pagava o pato. Virava e mexia, aquele soldado magrelo surgia com uma nova tarefa para ocupar as crianças. Aquele homem era ranzinza, falava alto, tinha a voz grossa, resmungava e não permitia que as crianças estourassem nem mesmo uma bombinha nas festas juninas. Alegava que o estampido da bomba lembrava tiros. Isso o deixava irritado. Dizia com a testa franzida e voz de quem estava com raiva:
- Quero ver o sem vergonha que soltou essa bombinha!!!
Ninguém aparecia. Ele ficava na janela resmungando.
Quando ia se aproximando o mês de setembro, começavam os ensaios para homenagear o dia da independência, “mas que independência?!” Enquanto estudantes, professores, atores, jornalistas, poetas, músicos e outros eram torturados até a morte nos porões das grandes metrópoles e até mesmo nos campos, por pregarem a liberdade.
As crianças daquele tempo amargavam marchando nos caminhos de terra, debaixo de um sol escaldante, cantando uma música que repetia esse refrão:
- “Eu te amo meu Brasil, eu te amo. Ninguém segura à juventude do Brasil”...
Ingenuamente, pensava que aquilo não passava de uma música de carnaval. Nem de longe podia imaginar que atrás daquela canção escondia outra página da história, outro Brasil. Um Brasil que fechava sindicatos e amordaçava pessoas. Invadia casas, destruía escolas, queimava livros, jornais e outros meios de comunicação. Matava crianças inocentes, - só por serem filhos dos que sonhavam com um futuro melhor - sem dó nem piedade, sumia com pessoas para nunca mais. Tínhamos o direito de não termos direitos, ainda hoje carregamos o peso daquele tempo. O pior é que sei que não mudou só se transformou para o velho truque do faz de conta e vestiu o casaco da liberdade. Lobos travestidos de ovelhas continuam comandando a nação.
Naquele tempo, vi meninos descalços, famintos, mal vestidos, seguindo cantando pelos caminhos de terra, pisando nos cascalhos, espinhos e pedras de um Brasil arcaico, tradicional e preso ao imperialismo. A ditadura militar infiltrava-se em toda parte, vestida de nova e moderna. Absorvíamos como se fosse parte da evolução da Pátria. Eles tinham agentes infiltrados em todos os lugares. O Geraldo soldado cumpria bem o seu papel. Para mim, ele não passava de um “aborto da natureza”. Talvez, inconscientemente, mas, era mensageiro de uma legião de inimigos da geração futura.
Alguns políticos dessa pátria, naquela época, eram excludentes, traiçoeiros, truculentos e assassinos. Muitos morreram velhos, outros estão aposentados, recebendo fortunas do estado. Seus filhos, netos e bisnetos ocupam seus lugares no cenário político, dando continuidade a ideologia do passado. Até hoje suas vítimas ainda vivem assombradas com o que fizeram e ainda fazem ocultamente com os menos favorecidos. A polícia existe apenas para defender interesses do estado e dos burgueses. No tempo da escravidão no Brasil, ela defendia os fazendeiros, como capitães do mato. O exército dos inconscientes cresceu, agigantou-se, brigando contra as conquistas do povo.
O militar, “o tal Geraldo Soldado”, ensinava que onde houvesse uma bandeira, tínhamos que parar e bater continência em posição de sentido, como faz os militares brasileiros. Naquele tempo, não queria saber nem da roupa que usava, quanto mais, a bandeira!
Depois de muito tempo vi a verdadeira função desse pedaço de pano decorado, criado especialmente para separar fronteiras, dividir terras e provocar intrigas. Exemplo disso é o que ocorreu em mil e quinhentos, quando os “civilizados” entraram no Brasil. O Brasil era composto de palmeiras, mar, pássaros, terra e uma gente brava, guerreira, linda e feliz. Os “civilizados” chegaram massacrando as nações indígenas, barbarizando as mulheres, catequizando as crianças, impondo seus “conhecimentos”. No lugar de cada aldeia exterminada, deixavam uma bandeira. Por esse ato “heroico”, receberam o nome de bandeirantes. Hoje existem ruas, praças, bairros e cidades com seus nomes. “Os heróis do Brasil!”
Uma vez vi a linda bandeira tendo utilidade. Diga-se de passagem, foi um ato verdadeiramente heroico. Uma mulher tipicamente brasileira, ou melhor, fruto da miscigenação. Uma cabocla, tendo a maçã do rosto saliente, cabelos lisos e pele escura. Ela tinha olhar profundo, semblante triste e marcado pelos tormentos dos antepassados. A pobre mulher foi ter criança em um hospital público. Não havia leito. Pegou outro ônibus e partiu para outro hospital, onde também não havia lugar, nem médicos para atendê-la. Sofrendo a terrível dor do parto, pegou outro ônibus com sentido ao terceiro hospital. Também não havia lugar. Foi então que a pobre mulher, se contorcendo de dor, deu à luz uma linda criança, na calçada daquela maternidade. Recebeu o auxilio só dos infortunados indigentes, dos garis e transeuntes. Sem higiene, sem estrutura e sem nada para se limpar, outra companheira de falta de sorte, tanto quanto; olhou para o céu, como se pedisse socorro para Deus. Inesperadamente enxergou balançando no vento a tal bandeira do Brasil, que parecia dizer:
- Veja-me aqui. Para que sirvo se não ficar diante desse monte de máquinas humanas? Estou a sua disposição!
A senhora, coberta de humildade, entrou no jardim e desceu a bandeira do mastro. Com o amarelo, limpou a sujeira. Com o verde, cobriu a mãe. Com o azul e branco cheio de estrelas, ela vestiu a criança. A mãe, aliviada e sorridente, parecia ignorar a situação em que se encontrava. Disse com alegria e doçura:
- Se chamará Pindorama!
Poucos dias depois, o Pindorama, inocente, ouviu nos noticiários que seu primo da aldeia Pataxó, tinha sido sacrificado, incendiado vivo no Planalto Central do Brasil. Possivelmente, vítima dos filhos, netos e bisnetos dos antigos políticos dessa nação. Enquanto isso, o país comemorava na época, cinco séculos de “civilização”.
Ele, índio, aborígine, mendigando um pedaço de terra para plantar e viver. Terra que é sua por direito. Recebeu como recompensa, as chamas, as labaredas, a fúria do fogo, em nome da modernidade e da “civilização” brasileira.
Para quem não sabe, Pindorama quer dizer: “Lugar de palmeiras, primeiro nome do Brasil”.
Realmente foi o lugar mágico das palmeiras. O lugar dos povos de pele vermelha. Lugar de gente feliz. Lugar encantado dos pássaros e outros bichos. O pele vermelha teve sua cultura esmagada, seus rios poluídos e sua língua cortada. Ele sobrevive agora no silêncio como se fosse estrangeiro em sua própria casa. Esse é o pagamento que o Brasil e a “civilização” deram ao Índio, em troca da terra.
É triste saber que centenas e centenas de índios morreram defendendo o Rio Tietê e outros rios. Na tradução, Tietê, quer dizer: Rio Verdadeiro. Naquele rio, o índio ganhava a vida. Ele bebia daquela água. Pescava e alimentava sua família daquelas águas. Navegava naquelas águas. Aquele rio era tudo para as nações indígenas. A “civilização” assim vai devorando as nascentes, os lagos e os rios.

SANTIAGO DIAS
(Treco do livro: O Plantador de Manhãs)

sábado, 7 de janeiro de 2012

A FÚRIA DAS ÁGUAS - “Para onde vais, tu, grande enchente?"


Foto da web

Estou procurando sentido na vida. Uma loucura só. O menino nasce, se tem sorte de ficar com a mãe, felizardo. O pequeno cresce um pouquinho, começam as desventuras. O leite da mãe secou. O pai, desempregado. Perdeu, porque a empresa que trabalhava, comprou máquinas que faz o serviço de vários homens. Conclusão: várias pessoas fazendo cruz na boca, privadas do alimento. Se o menino tiver a sorte de crescer, mesmo dentro das privações, ainda corre risco de ser adotado por delinquentes e tornar-se, um deles. Se ultrapassar essa barreira, pode ser apanhado por balas que vem não sei de onde. Se caso passar também por essa prova de fogo, é um adolescente, pensamentos próprios e turminha de amigos. Namoradas, tudo mais. Motivo de comemoração.
Chegando tarde do baile, com sua roupa da moda, cabeça cheia de sonhos, ouve um grito:
- Parado aí, seu vagabundo, é a polícia!
O coração quase saindo pela boca. No pensamento, surgiram as cenas de violência. Por sorte, escapou também da brutalidade, do autoritarismo. Com mais sorte ainda, chegou a sua casa, são e salvo.
Sábado, de novo no baile, amigos reunidos e alegria. Conhece uma mocinha, começa o namoro. Consegue emprego, para de estudar. Depois de seis meses, a distinta engravida. Mais um na correria, na corrente do desespero. Outro João sem nada. Outro e mais um, outro e outros. O barraco, cheio de gente. As cabeças vazias. Tudo parecia melhor. Alguns trabalhando. A mãe acabada, o pai desdentado. Família trapo, farrapo humano, mas a vida melhora! Barraco de tábua, tijolos, geladeira para o leite não azedar. Fogão a gás para aquecer a sobra de ontem. Penteadeira com espelho, para ver o rosto magro e triste. Cama de casal, colchão esmolambado. Beliche para quatro e outro para as quatro.
Quando tudo parece bem, todos felizes. O suposto lar irradia harmonia, apesar dos desencontros.
Todos em casa, todos dormindo, todos sonhando. A chuva começa de leve, acalentando o sono, trazendo novos sonhos. A chuva foi aumentando, virou tempestade e se estendeu pela noite afora. Durou quase a noite toda. Segunda feira restou o vazio, onde ficava o barraco. A família foi arrastada pela correnteza. Os corpos foram misturando-se com móveis, lixo, esgotos e se perderam nos becos da cidade, para nunca mais. Diante desse drama lamentável, perguntei para a correnteza:
“Para onde vais, tu, grande enchente? / Vede o fruto que carregas; / arrastando-o turbulenta; / O que pretendes? / Arremessando-o contra as pedras; / É destruí-lo que tentas? / O que fazes correnteza? / Por que não lhe dá uma chance? / Ele não vai resistir! / Vês o que fizestes? / De tanto bater-lhe, de tanto açoitá-lo/ Tu conseguistes fazê-lo partir! / Mas o fruto que abre espalha as sementes... / e sobre estas águas sujas / Por mais que faças, estarão flutuando! / E agora, o que farás? / Por mais que te agites, tu as semeia! / E sobre tuas margens estarão germinando.” *
Pena que não somos como os frutos. Não resistimos à fúria das correntezas. Se fôssemos assim, essa família teria brotado em outro lugar. Talvez com mais sorte, suportasse com mais firmeza os contratempos do destino. Não se entregaria para uma cidade inundada.
Eles partiram, deixaram só a lembrança. O vazio de um barraco e a solidão dos que ficaram.

*Esse texto foi inspirado através da poesia CORRENTEZA, do professor e poeta, Jean Sebas Lhe Vate.

SANTIAGO DIAS
(Trecho do livro: O Plantador de Manhãs)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

A RABECA NÃO SILENCIOU - (Ao Maestro Zé Gomes)


Zé Gomes - Foto retirada da Web

Sempre ouvi que música clássica instrumental era feita exclusivamente para dormir. Achava que a música era bonita demais para uma função tão pequena. No meu caso, dormia logo na segunda faixa. Desde que me entendo por gente não me lembro de perder uma noite de sono, mas com a música, dormia mais rápido. Dormia o sono dos justos, mesmo com o mundo caindo sobre minha cabeça. Realmente a música funcionava com perfeição. Um dia parei para pensar e conclui que nunca precisei de música para dormir. Resolvi conhecer melhor a instrumental clássica. Fui às lojas e comprei Bethovem, com ele o sono não me pegava tão rápido e, assim, pude ouvi-lo com a devida atenção. Achei a coisa mais linda do mundo. Parecia um milagre. Depois foi a vez de ouvir Tchaikovsky, Vivaldi, Ravel e entre eles veio também o Mozart. Parecia que o som dos violinos vinha cortando o céu, entrava no meu íntimo e se alojava na alma. Achava isso uma maravilha e eu era um privilegiado por ter descoberto um estilo tão encantador. Essa música me transportava para os estados mais variados. Chorava e ria de emoção ao mesmo tempo. Queria mostrar aos meus colegas que insistiam em ouvir o que se tocava nas emissoras de rádio.
Naquele tempo, conhecia com propriedade a música caipira, cada ponteio, cada arpejo e cada nota. Sabia até o timbre de voz dos intérpretes. Conhecia também o samba, o baião, o forró, o xote, o bolero, a valsa, o tango e até outras músicas com estilos duvidosos, mas da instrumental clássica não tinha conhecimento. Conheci o Bolero de Ravel e achei que não parecia coisa feita por alguém de carne e osso. Achava que só Deus poderia fazer algo com tamanha perfeição e beleza. Tudo no seu lugar, cada instrumento soava no seu devido lugar. Cada acorde, cada nota, era fascinante.
Os ignorantes diziam que só as pessoas com sexualidade duvidosa gostavam desse estilo de música. Eles usavam essa mesma expressão para os filósofos e outros ligados às artes. Por isso, muitos colegas menos esclarecidos se afastaram de mim, mas não deixei de me aprofundar e conhecer melhor esse encantamento chamado instrumental. Os velhos colegas estão mergulhados na obscuridade do desconhecimento e permanecem presos a seus dogmas. Teimosamente continuo ouvindo esse estilo e posso garantir que não me tornei menos homem por isso.
Há muito tempo fui a um show de um conhecido cantor e vi um jovem franzino, esguio e sereno com seu violino, tirando notas e sons que pareciam vir do além. Num dado momento o cantor nos brindou com um solo daquele instrumento. Foi um instante mágico. Nunca me esqueci. O violino só faltava falar. Imitava crianças sorrindo ou chorando. Imitava também os animais, as aves e até os automóveis. Era a grandeza humana contida num instrumento tão pequeno. Fui a outros shows e lá estava ele com seu instrumento. A todos os shows de que ele participava eu ia, só para ouvi-lo e vê-lo destilando suas canções.
Certo dia fui à casa de uma amiga e de súbito conheci seu esposo, o bendito violinista. Era o jovem que sempre vi atrás daquele doce e sagrado violino. O maestro Zé Gomes, aquele homem cheio de sensibilidade e música. Tornamo-nos amigos e parceiros, a partir daquele instante. Ele me recebeu como se fossemos velhos amigos e na hora começamos criar, unindo palavras e músicas. Assim as palavras começaram a dizer o que estava preso na garganta e no coração.
Seu nome de batismo é Jose Bonifácio Kruel Gomes, mas por mais de cinco décadas se tornou conhecido como Zé Gomes, o “Zé”. Familiar à arte de Bach, Stravinsky, Mozart, Paganini, Villa-Lobos, de quem foi magnífico intérprete.
Através de suas músicas eu consigo falar com Deus. Quando paro para orar, a minha reza é música instrumental. Tenho certeza que chego bem perto do paraíso, onde possivelmente, ele, o Zé Gomes, deve se encontrar com aquele sorriso amigável e gentil. Portanto, posso dizer que sua rabeca não silenciou, apenas mudou de plano.
Passei vários anos esperando a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente e me contentava apenas em assisti-lo nos palcos. O que me conforta é ter a honra de tê-lo conhecido. Era um poeta que não se preocupava em escrever em forma de palavras. Escrevia através das notas musicais, das canções e frases que criava nos pentagramas. Sua voz anasalada, aveludada, suave e pausada, jorrava poesia.
Possuo alguns CDS de sua autoria. São músicas feitas com alma e sentimento. Além disso, tenho orgulho de poder ouvir minha poesia em sua voz, acompanhado por ele mesmo, executando vários instrumentos. Viola de Cocho, Violoncelo, Violão, Piano e o lendário violino, que ele mesmo o chamava de rabeca. Só lamento não ter oportunidade de desfrutar mais da sua ilustre companhia.
“O som da rabeca interrompeu-se. Em meio ao acorde, calou-se, até a vibração se extinguir por completo, o tempo suspenso, o vazio. E o rabequeiro Zé Gomes sai de cena, deixando a peça inacabada.
Escrevi rabequeiro, mas o Zé era artista completo: arranjador, compositor, luthier, pesquisador e maestro. Pensador da cultura, crítico radical das “panelinhas” repletas de sanguessugas e vampiros, dos que mamam verbas, conluio infame onde “quem está dentro não sai e quem está fora não entra”. O Zé não estava nessa. Durante seu longo percurso, sempre foi rebelde, arredio, avesso ao sucesso fácil e aos holofotes.”
O velório não foi de tristeza, choro, foi uma festa, como ele mesmo gostava. Os amigos tocaram e cantaram canções inesquecíveis. Infelizmente eu não estava presente, pois sempre esperei que vivesse muito mais. Ele tinha mais para doar a humanidade através da música. Agora só me resta ouvir sua música e relembrar sua graciosa amizade. Ele deixou um vazio imenso, não só como músico, mas como amigo e irmão.
Partiu deixando um legado para a posteridade. O barco do destino chegou inesperadamente e o levou para tocar com os anjos, diante do senhor das histórias.
Cheguei pensar que nos dias seguintes iríamos nos encontrar para darmos continuidade aos trabalhos. Achava que era só uma brincadeira de mau gosto, travessura de criança. Mas ele se foi e deixou esse silencio assassino. Ainda bem que sua música ficou para abrandar nossos corações. Obrigado Zé, por sua contribuição humana. O mundo sem você não é o mesmo!
SANTIAGO DIAS
(Trecho do livro: O Plantador de Manhãs)
Santiagodias13@yahoo.com.br