GERMINAR

A Cada nascer do sol
Há esperança de ser livre
E como pássaro peregrino

Voar confiando em não ser só.


Santiago Dias

sábado, 7 de janeiro de 2012

A FÚRIA DAS ÁGUAS - “Para onde vais, tu, grande enchente?"


Foto da web

Estou procurando sentido na vida. Uma loucura só. O menino nasce, se tem sorte de ficar com a mãe, felizardo. O pequeno cresce um pouquinho, começam as desventuras. O leite da mãe secou. O pai, desempregado. Perdeu, porque a empresa que trabalhava, comprou máquinas que faz o serviço de vários homens. Conclusão: várias pessoas fazendo cruz na boca, privadas do alimento. Se o menino tiver a sorte de crescer, mesmo dentro das privações, ainda corre risco de ser adotado por delinquentes e tornar-se, um deles. Se ultrapassar essa barreira, pode ser apanhado por balas que vem não sei de onde. Se caso passar também por essa prova de fogo, é um adolescente, pensamentos próprios e turminha de amigos. Namoradas, tudo mais. Motivo de comemoração.
Chegando tarde do baile, com sua roupa da moda, cabeça cheia de sonhos, ouve um grito:
- Parado aí, seu vagabundo, é a polícia!
O coração quase saindo pela boca. No pensamento, surgiram as cenas de violência. Por sorte, escapou também da brutalidade, do autoritarismo. Com mais sorte ainda, chegou a sua casa, são e salvo.
Sábado, de novo no baile, amigos reunidos e alegria. Conhece uma mocinha, começa o namoro. Consegue emprego, para de estudar. Depois de seis meses, a distinta engravida. Mais um na correria, na corrente do desespero. Outro João sem nada. Outro e mais um, outro e outros. O barraco, cheio de gente. As cabeças vazias. Tudo parecia melhor. Alguns trabalhando. A mãe acabada, o pai desdentado. Família trapo, farrapo humano, mas a vida melhora! Barraco de tábua, tijolos, geladeira para o leite não azedar. Fogão a gás para aquecer a sobra de ontem. Penteadeira com espelho, para ver o rosto magro e triste. Cama de casal, colchão esmolambado. Beliche para quatro e outro para as quatro.
Quando tudo parece bem, todos felizes. O suposto lar irradia harmonia, apesar dos desencontros.
Todos em casa, todos dormindo, todos sonhando. A chuva começa de leve, acalentando o sono, trazendo novos sonhos. A chuva foi aumentando, virou tempestade e se estendeu pela noite afora. Durou quase a noite toda. Segunda feira restou o vazio, onde ficava o barraco. A família foi arrastada pela correnteza. Os corpos foram misturando-se com móveis, lixo, esgotos e se perderam nos becos da cidade, para nunca mais. Diante desse drama lamentável, perguntei para a correnteza:
“Para onde vais, tu, grande enchente? / Vede o fruto que carregas; / arrastando-o turbulenta; / O que pretendes? / Arremessando-o contra as pedras; / É destruí-lo que tentas? / O que fazes correnteza? / Por que não lhe dá uma chance? / Ele não vai resistir! / Vês o que fizestes? / De tanto bater-lhe, de tanto açoitá-lo/ Tu conseguistes fazê-lo partir! / Mas o fruto que abre espalha as sementes... / e sobre estas águas sujas / Por mais que faças, estarão flutuando! / E agora, o que farás? / Por mais que te agites, tu as semeia! / E sobre tuas margens estarão germinando.” *
Pena que não somos como os frutos. Não resistimos à fúria das correntezas. Se fôssemos assim, essa família teria brotado em outro lugar. Talvez com mais sorte, suportasse com mais firmeza os contratempos do destino. Não se entregaria para uma cidade inundada.
Eles partiram, deixaram só a lembrança. O vazio de um barraco e a solidão dos que ficaram.

*Esse texto foi inspirado através da poesia CORRENTEZA, do professor e poeta, Jean Sebas Lhe Vate.

SANTIAGO DIAS
(Trecho do livro: O Plantador de Manhãs)

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