GERMINAR

A Cada nascer do sol
Há esperança de ser livre
E como pássaro peregrino

Voar confiando em não ser só.


Santiago Dias

sábado, 14 de abril de 2012

O MENINO QUE NÃO ERA NADA



(À Professora Dioguina Augusta Santana)
Foto da Web

Era um menino normal como qualquer um daquela região. Gostava de brincar com os outros de sua idade. Apesar da timidez, era alegre e sonhava com um futuro melhor. Só recebia carinho dos animais, pois morava no interior. Seu próprio pai propagava que ele era a pior criança daquele lugarejo.
Esse menino foi crescendo assim, sempre ouvindo do pai:
- Você não é nada, não vale nada e nunca vai ser nada!
Essa frase era repetida todos os dias, toda hora e em todo lugar. Ele acordava e seu bom dia era esse bordão. De tanto o pai falar que ele não era nada aos parentes, vizinhos, amigos e até aos estranhos, ele passou a ser chamado de Nada. Por onde o pequeno andava, alguns maldosos inventavam histórias mentirosas a seu respeito. O homem não queria saber se era mentira ou não, por isso o surrava covardemente. Aquelas pessoas riam ao vê-lo todo cortado das chicotadas. O pobre menino vivia com o corpo marcado. Ainda por cima, aquele homem ordenava aos amigos para surrá-lo quando o vissem fazendo peraltices. Esses homens, ao encontrá-lo em qualquer lugar, já iam logo tirando a correia ou cinto. A humilhação vinha de todos os lados. Apanhava de uns homens estranhos, ignorantes e agressivos. Falavam para seu pai que ele estava fazendo travessuras, o “troglodita” acreditava. Acho que esses homens admiravam muito a violência do pai do Nada, pois talvez fizessem o mesmo com a família. Seu pai não queria saber e nem podia imaginar que esse menino tivesse algum traço de inteligência ou personalidade.
O Nada vivia triste, percebeu que não era querido por ninguém. Por onde andava, as crianças e até adultos o ridicularizavam. Pensou várias vezes em suicídio, mas por gostar muito da mãe, não quis causar-lhe mais aborrecimentos. Achava que ela também era vítima.
O Nada crescia sendo nada, vencia seus obstáculos como nada. Com seis anos, começou a estudar, mas antes de ir para a escola, tinha que tratar dos porcos e das galinhas. Tinha que buscar lenha, cortar cana, ajudar a moer numa engenhoca de madeira, tomar banho no córrego e sair correndo por quatro quilômetros, até a escola, sem comer nada. Lá ficava das sete às doze horas, quase morrendo de fome. Naquele tempo não tinha merenda. Com esse histórico, nada entrava no seu entendimento. Passava de professora por professora e nada de nada. Passava de sala por sala e nada de aprendizagem. Até ele começou se convencer de que era nada mesmo.
Por sorte apareceu na escola uma professora, que se interessou por ensiná-lo. Só então começou a sentir certo orgulho de si mesmo. Ela dizia que ele era tão importante quanto qualquer pessoa e começou chamá-lo pelo nome civil. Foi aí que ela fez o Nada perceber que era alguma coisa, mesmo contrariando o pai e amigos. Através daquela professora, ele descobriu que era gente, que tinha sentimentos e que gostava das pessoas. Aprendeu a escrever e ler tudo, principalmente poesias. Aprendeu a ouvir músicas e até esboçava um sorriso, ainda que quase todos os que o rodeavam o considerassem nada.
Parecia tarde demais para que alguém percebesse alguma importância em Nada. Seu pai se empenhava fervorosamente com unhas e dentes para que todos desacreditassem nesse menino. Sempre dizia para quem os visitasse:
- Estou falando sério, esse menino não vale nada mesmo!
Dizia isso repetidas vezes a qualquer um que se aproximasse dele. Para algumas pessoas, era Nada pra lá, Nada pra cá e assim ia correndo o tempo. Mas o Nada agora descobriu a poesia. Começou se relacionar com os livros e o mundo mágico dos poetas. Conheceu também a esperança, que até então parecia muito distante.
Enquanto ele sonhava, o pai se preocupava em propagar que o menino era nada. O Nada lendo e relendo os poetas, desenvolveu também suas poesias, mas para seu pai não era nada. Também pudera, ele não sabia ler! Sua mãe, seus irmãos e seus sobrinhos não são diferentes. Parece que isso vai ocorrer ainda por muito tempo nas gerações vindouras dessa família.
O Nada se mudou com a família para uma cidade grande e a tônica do seu pai em afirmar que ele não era nada, enfraqueceu. Nesse outro lugar, o Nada conhecia as pessoas antes do seu pai e isso começou a inverter a situação. O Nada já era um adolescente que gostava de ler e escrever poesias. Isso o destacava entre os demais, fato que irritava profundamente o pai. Um dia o velho acordou bem cedo, pegou um saco preto, juntou os trapos do Nada e jogou na calçada. Voltou e tirou o Nada a socos, empurrões e ofensas da cama e o escorraçou de dentro de casa, dizendo:
- Não volte nunca mais aqui. Nunca mais quero ver a sua “cara”!
Foi mais um tropeço na vida do Nada.
Saiu caminhando sozinho, triste, sem dinheiro e perdido nas ruas da cidade grande. Passava as noites assentado na área de espera da rodoviária, onde não corria o risco de ser agredido por policiais ou outros moradores de rua. Por ali ele ficou vários dias, sem alimento e sem higiene pessoal, já que se encontrava totalmente desprevenido financeiramente.
Apesar de tudo, o Nada não perdeu a esperança. Por onde andava, levava consigo uma pasta com suas inseparáveis poesias, que era o bem mais precioso que possuía. Ele declamava para seus colegas de infortúnio e isso o popularizou entre eles. Através desse feito, conquistou o carinho desses pobres infelizes, pois todos tinham uma história parecida. A companhia desse menino era disputada. Até que um deles o convidou para trabalhar como servente de pedreiro em outro estado. Segundo esse colega, era só convencer o homem que selecionava, podia mentir até a idade. Foram ao local da seleção, mas ele era ainda menor de dezoito. Naquele tempo isso era fácil de resolver: fez novos documentos, com vários anos a mais e foi contratado de pronto. Ele, o amigo e outros companheiros de falta de sorte partiram para outro estado. Foi assim que conseguiu deixar de ser morador de rua.
Na obra em que foi contratado, trabalhavam quase mil operários, todos parecidos com ele, na tristeza, na solidão e na angústia. Percebeu também que somente vinte por cento eram alfabetizados. Todos se encantaram com suas histórias e seu jeito de contá-las. Vinham de longe para ouvir suas poesias.
O Nada escreveu cartas para esses colegas analfabetos e lia as que eles recebiam. Muitos outros começaram a procurá-lo para escrever para parentes distantes. Sabia a intimidade de cada um e até o destino daqueles homens e através deles conheceu cultura de diversos lugares do país. Foi assim que começou a se especializar na arte de escrever. Ele viu na prática o quanto aquela professora com sua estreiteza de caráter e sensibilidade lhe fez bem. Com o tempo o Nada foi tomando mais gosto pela escrita e foi apurando seu estilo de escrever.
Hoje o Nada é conhecido e admirado em muitos lugares, mas onde ele se originou, não passa de um mero estrangeiro. Uma vez um colega de adolescência disse:
- Nem aparência de poeta ele tem!
Qual será a aparência de um poeta?
De qualquer forma o Nada criou vários livros. Ele é referência e respeitado por outros amigos e poetas, mas para seus antigos colegas e parentes, ele simplesmente não é nada. Seu pai morreu, mas se estivesse vivo, possivelmente ainda o consideraria nada. Nem seus irmãos conhecem seus trabalhos, provavelmente continuam achando que ele não é mesmo nada e seu trabalho, menos ainda.
Ainda bem que o Nada teve a alegria de conhecer aquela professora. Aquele momento foi o divisor de águas em sua vida. Ela conseguiu transformar o nada em um ser humano. Bastou algumas palavras de autoconfiança, como qualquer um precisa. Que Deus abençoe essa professora, onde quer que esteja! Ela e seus conhecimentos mágicos conseguiram resgatar o menino poeta de trás da cortina preta da ignorância e elevá-lo a dimensão das estrelas.
Foi através dessa reflexão e de um momento minúsculo de lucidez, que percebeu o quanto o professor é importante para a sociedade. O Nada tinha tudo para ser um criminoso, revoltado, violento e, no entanto, escolheu a poesia para tentar aliviar a dor de outras vitimas.
Qualquer palavra de desestímulo vinda dos pais, pode atrapalhar psicologicamente e destruir a vida inteira de um cidadão. As palavras podem torná-lo agressivo, truculento, complexado e isso se estender por toda vida.
SANTIAGO DIAS
(Trecho do livro: Caminhos de Nova Belém)

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