GERMINAR

A Cada nascer do sol
Há esperança de ser livre
E como pássaro peregrino

Voar confiando em não ser só.


Santiago Dias

quarta-feira, 11 de abril de 2012

POESIA SEM POESIA


Imagem da Web

Ganhar livros nem sempre me deu alegria. Quando tinha seis anos de idade, meu pai viajou para a capital do Estado. Ao retornar, trouxe presentes para todos os filhos. Fiquei ansioso esperando o meu. Ele tirou da bolsa um livro velho, sem capa, com as folhas amarelecidas e sujas. Deu-me aquilo. Senti vontade de jogar fora na mesma hora. Como sou discreto, resolvi esperar um pouco. Depois que ele terminou de contar suas vantagens e desvantagens, chamou-me. Pegou o livro de minhas mãos e disse:
- De hoje até domingo quero que você aprenda essas duas lições! Apontando para as primeiras páginas.
- Se não me der essas lições na ponta da língua, sem gaguejar, esse chicote vai comer!
O chicote é usado para bater em cavalos e outros animais. É também chamado de relho. Meio metro de madeira roliça e um pouco mais de um metro de couro, desfiado na ponta. Onde pega, valha-me Deus! Em qualquer parte do corpo ele deixa vários vergões. Marcas roxas, muitas vezes ficam em carne viva.
Tive sete irmãos e eu apanhei mais que os outros. Era o mais travesso e questionador. Para provocar-me, ele pegava uma pedra e dizia que era pau. Eu contestava dizendo que era pedra. Por isso, surrava-me violentamente. Ainda enfurecido, perguntava:
- Isso não é pedra, é pau, não é?
Balançava a cabeça afirmativamente. Só depois disso que ele parava de agredir-me.
Ainda não sei por que minha mãe tão passiva e amiga dos filhos permitia que ele fizesse aquilo. Ela se limitava a olhar-me sem nada dizer. Observava-me com tristeza. Sentia-me o pior ser humano do universo. Às vezes, penso que ela não dizia nada para não tirar a autoridade dele. Depois de toda a humilhação, pensava:
- Nunca mais vou falar com esse homem!
Ela, cheia de artimanhas, tramava alguma coisa para amenizar o confronto. Acabava me esquecendo de que éramos inimigos mortais. Para maior aborrecimento, ele comentava com os amigos. Para ele, espancar filhos, parecia natural e isso me deixava ainda mais constrangido.
Quanto ao livro em latim, passei a semana procurando alguém que soubesse lê-lo, mas ninguém, nem mesmo os professores da região. Quando faltavam dois dias para vencer o prazo estabelecido, não sabia nada, a não ser, soletrar algumas palavras parecidas com o português. Temendo as surras que recebia até mesmo sem motivo, imagina agora, merecendo! Comecei planejar alguma coisa para me livrar da violência.
Chegou o bendito domingo e pensei que ele havia se esquecido. Fugi dele o tempo todo e nada adiantou. Antes do almoço, pegou o chicote, sentou-se no quintal e gritou:
- Vem aqui realizar sua tarefa!
Meu coração só faltava pular pela boca. Sabia que ia sofrer aquelas chicotadas que doíam até na alma. Sentei-me diante dele, parecendo um cachorrinho indefeso e maltratado pelo dono. Estava sem camisa e descalço, vestido apenas com uma pequena bermuda. Só pensava naquele chicote lambendo minhas costas com aqueles fios de couro retorcidos, deixando marcas roxas, onde alcançasse.
De repente veio-me a luz, subitamente lembrei-me que ele não sabia ler. Não lia nem português, quanto mais latim. Pensei inventar outras palavras, pois ele não sabia nada tanto quanto eu. Foi aí que comecei a narrar o que estava à minha volta. Falei do jardim florido e da laranjeira em flor, parei como se tivesse terminado a primeira lição. Olhei por cima do livro e constatei que ele estava rindo com satisfação. Pensei:
- Convenci o pangaré!
Sem pestanejar, ainda com o chicote na mão, pediu-me outra lição. A segunda foi mais difícil, pois teria que ser um tema diferente. Ele não podia perceber a farsa. Comecei a segunda lição falando pausadamente e com mais naturalidade.
Foi assim que enganei meu pai e não recebi essa surra. Também foi assim que consegui criar minha primeira poesia, mesmo sem inspiração. Por esse fato, eu o perdôo. Inocentemente, até hoje, ele pensa que sou um exímio conhecedor do latim.
Não se esqueçam de que a violência que se espalha nas ruas, começa em casa. Todas as crianças que são espancadas em casa acabam cometendo o mesmo erro com os colegas de sua idade. Eu saia de casa com vontade de bater em qualquer criança que encontrasse. Parecia que ela era culpada do que ocorria comigo. Tinha vontade de bater, principalmente nos adultos. Achava que eles eram meus inimigos. Era uma luta para controlar esse instinto de violência que morava em mim. Tinha raiva de quem me cumprimentasse.
Esse relato não é para revelar nenhuma mágoa do meu pai. Isso é só uma revelação da lembrança amarga do meu tempo de menino. Nunca consegui esquecer. Lembro-me bem de uma frase de efeito, que diz: “Quem apanha, nunca esquece”. Sou prova viva desse argumento.

SANTIAGO DIAS
(Trecho do livro: O Plantador de Manhãs)

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